São sete e meia da manhã em Seia. O sol levanta-se por trás do edifício da Câmara Municipal e começa a inundar o largo, onde já estão reunidas mais de cem pessoas que madrugaram para participar numa tradição ancestral. A qualquer momento, vai passar por aqui um rebanho com mais de 1500 ovelhas, em direção às zonas altas da montanha da Serra da Estrela. Na realidade são vários rebanhos, conduzidos por 10 pastores da velha guarda, que ainda exercem uma das práticas mais antigas da pastorícia da Europa rural. A transumância.
“Já se ouvem os chocalhos”, alguém grita. A multidão pende para a extremidade da praça e debruça-se sobre a rua alguns metros abaixo. Dezenas de ovelhas sobem o alcatrão, algumas decoradas com enfeites de lã colorida e chocalhos enormes ao pescoço. Dobram a esquina e passam à nossa frente, num tilintar desenfreado, conduzidas por um pastor. É o primeiro rebanho do dia. “A seguir vem o do Pula”, grita um dos fotógrafos. Refere-se a Miguel “Pula”, um pastor quarentão de Paranhos da Beira, bastante respeitado pelos seus pares, detentor do maior dos rebanhos. Ele e os outros nove pastores vão atravessar a cidade de Seia, percorrer estradões de terra, pequenas povoações e trilhos da montanha, rumo ao Sabugueiro, “terra dos pastores” e aldeia mais alta de Portugal. A partir daí, seguirão para os prados da alta montanha, onde permanecerão todo o verão.
“Na transumância, os rebanhos são conduzidos para as pastagens de altitude da serra, onde as ervas, relativamente aos campos da terra chã, permanecem verdejantes até mais tarde”, esclarece José Conde, biólogo do CISE (Centro de Interpretação da Serra da Estrela). José está familiarizado com o tema, não só académica e profissionalmente, como também a título pessoal. Os seus avós paternos e maternos eram pastores e praticaram a transumância durante parte da sua vida ativa. Por vezes, durante as férias grandes da escola, José acompanhava o avô materno na condução do rebanho.
“Há também a transumância de Inverno”, afirma o biólogo. Explica que nessa altura, os rebanhos das aldeias serranas de maior altitude eram conduzidos para planícies mais temperadas, para fugir aos rigores do período mais frio. “Atualmente já não se pratica a transumância invernal e a estival é apenas realizada por um número reduzido de pastores”.
Os pastores continuam a desfilar os seus rebanhos perante a multidão. Alguns dos animais ostentam ornamentos coloridos de lã e chocalhos enormes. “Esse costume visa evidenciar a riqueza do rebanho”, refere José. Elucida que apenas os bodes castrados, designados “chibos”, é que são enfeitados. “Os animais castrados são mais corpulentos e mais focados na subida, distraem-se menos com outros ‘afazeres’. Ter animais sem uma função útil óbvia demonstra a riqueza do rebanho e os enfeites dão destaque a esse luxo”, afirma o biólogo.
Na assistência, há pessoas vestidas de pastores que não são pastores mas homenageiam os familiares que o eram. Outras, carregam máquinas fotográficas ou até tripés com máquinas de filmar, com roupas de trekking e bastões nas mãos. Parecem ter alguma experiência no acompanhamento desta atividade. E esse acompanhamento é um evento turístico. É já a sétima edição da Festa da Transumância, organizada pelo Município de Seia e pela ADIRAM (Associação de Desenvolvimento Integrado da Rede das Aldeias de Montanha), em articulação com os pastores do concelho. José saúda a iniciativa. “Trata-se de uma prática milenar que se efetua desde a pré-história”, afirma, salientando ser importante preservá-la nas memórias futuras. “A transumância representa um modo de vida difícil e em vias de extinção. Provavelmente, esta geração de pastores será a última a conduzir os seus rebanhos para os altos da serra”.
O percurso é árduo ao longo dos trilhos íngremes da montanha. O movimento dos rebanhos na terra levanta uma densa nuvem de poeira e quando esta se desvanece, vislumbra-se a silhueta de um dos pastores a perscrutar o mato. “Olha a chiba, olha a chiba!”. Uma das ovelhas fugiu do trilho e escapuliu-se para a vegetação. Tomás Marques foi o único a dar conta disso. Tem 11 anos e sonha ser pastor.
O cunhado está a ajudar um pastor local na transumância e convidou-o a participar. Sem hesitar, o jovem trocou um fim-de-semana na praia por esta experiência. “Foi uma boa troca!”, afirma sorridente. Desde os cinco anos que recorda tardes inteiras de Verão na aldeia de Algeraz (Nelas), a brincar com os amigos nos prados, enquanto tomava conta das ovelhas da família. “Fui criado neste meio e gosto disto”.
Denota uma experiência invulgar na atividade para a sua idade. Deteta marcas de javali ao longo do percurso, aponta fragilidades nos cães mais novos e responde muitas vezes a comentários dos participantes. “Coitadinho, aquele bezerro ainda anda com as pernas a tremer”, alguém diz. “Mais uma ou duas semanas e ele já acompanha os outros”, esclarece o jovem. “Como é que depois distinguem as ovelhas no topo da serra?”, alguém pergunta. Tomás olha para trás, muito calmo, e diz, com toda a naturalidade do mundo: “Elas têm marcas”.
Durante a subida, perceciona um comentário condescendente que induz que a pastorícia não é uma opção honrada para um jovem do século XXI. Vira-se para trás e riposta com um sorriso matreiro. “Prefiro caminhar e respirar ar puro aqui na montanha do que estar montes de anos na escola para um dia estar fechado num gabinete a atender telefones”. Orgulhoso com o seu colete, chapéu e cajado, não tem dúvidas: “Um dia quero ter o meu próprio rebanho”.
Os pastores são recebidos na aldeia de Póvoa Velha com música dos gaiteiros da APEDGF (Associação Portuguesa para o Estudo e Divulgação da Gaita-de-Foles). Há uma pausa para merenda e convívio. Os pastores conversam animadamente. Copos de vinho branco erguem-se junto aos cajados. “É o nosso combustível”, diz um deles. “A minha médica diz que tenho de beber água, mas eu água é só na sopa!”, afirma Pula. É dos mais animados. E requisitados. Quando os companheiros lançam uma piada ao grupo, não é incomum dirigirem-se a ele, em jeito de aprovação: “É ou não é, Pula?”. Embora existam pastores mais velhos, é notória a influência do pastor de Paranhos da Beira. “É definitivamente o macho alfa dos pastores da Serra da Estrela”, afirma José, a sorrir.
A subida é cada vez mais escarpada. É admirável a atuação dos cães pastores. Rodeiam, impelem, conduzem os rebanhos, sempre de forma ordenada e tranquila. Atentos, por vezes ficam na retaguarda, a perscrutar o terreno em busca de eventuais predadores. “Eles consideram as ovelhas como parte da sua matilha”, revela José. “O cão pastor da Serra da Estrela destaca-se pela sua tranquilidade, fidelidade e total empenho na defesa do rebanho”, complementa.
Há exceções. O Sr. Américo, pastor cinquentenário de São Martinho, adotou um enorme Leão da Rodésia, que o segue por todo o lado. “É uma raça mais nervosa e enérgica, a que falta alguns dos atributos essenciais de um bom cão de guarda”, refere o biólogo. No entanto, destaca a sua natureza protetora para com o dono.
Já se caminha a mais de mil metros de altitude. O cansaço, misturado com o calor, começa a apoderar-se de todos. “Lá está ela”, alguém diz, nitidamente aliviado. No topo do monte, avista-se a Ermida da Senhora do Espinheiro, uma capela secular junto à qual se vai almoçar e fazer a sesta. Em cima dos penedos, os músicos espalham pela montanha abaixo a sonoridade ancestral da gaita-de-foles, para encorajar os últimos pastores e rebanhos nas derradeiras centenas de metros de ascensão.
Junto à ermida há um vasto planalto verde onde está montada uma tenda para o almoço, apenas com produtos endógenos e tradicionais da Serra da Estrela. É lá que os pastores convivem com os participantes na iniciativa – cheios de questões e curiosidade – e com os familiares e amigos que os ajudam nesta subida à serra. “Em média, cada pastor traz entre oito a 12 ajudantes”, diz José.
O pequeno Tomás veio ajudar Pedro Cabecinha, um pastor da aldeia de Folgosa (Viseu). “É preciso ter alma de pastor e este homem tem-la”, afirma José. Pedro deixa escapar um sorriso envergonhado perante o elogio. O sorriso humedece-se em nostalgia, quando recorda a sua infância e todos os verões em que via o seu pai partir para a montanha com os rebanhos, sempre no dia 29 de Junho – dia de São Pedro e também do seu aniversário – onde ia permanecer dias e noites a fio, até “chegar o frio”. Na altura, construíam-se “choupanas”, pequenas e toscas cabanas construídas com a palha do centeio ou chapas zinco. Era aí – ou em abrigos com pedras empilhadas – que os pastores pernoitavam, aquecidos por uma fogueira e pelas recordações do lar e da família. “A minha mãe ia lá levar mantimentos, queijo, broa, chouriço, montada numa burra”. A realidade atual é diferente. “Hoje dormimos em carrinhas ou atrelados adaptados para esse efeito. Também comemos batatas e sopa quando antes era uma coisa ou outra”, afirma Pedro, aludindo às dificuldades do antigamente. “Se um pastor queria comunicar com outro, ia a pé, durante horas da madrugada, para chegar aos outros. Hoje, basta usar o telemóvel”.
Pedro cresceu e herdou o ofício do pai. Tornou-se um pastor reputado. “Temos de defender a profissão, ter gosto no que fazemos e tentar sobressair, tornar fácil o difícil, saber movimentar-nos, não com muito esforço, mas inteligentemente”. Refere que há pastores mais jovens que desanimam com as adversidades. Quando há menos pastagem, consideram até vender as ovelhas porque não sabem o que lhes dar para comer. “É aí que se encontra a tal alma do pastor”, refere Pedro. “Saber encher-lhes a barriga apesar das contrariedades do clima, sem as fazer sofrer a elas e a nossa cabeça”. Começou a estudar as variações atmosféricas e tornou-se numa espécie de guru da meteorologia. “Não é só saber guardar as ovelhas que se têm com fartura, a grande descoberta é saber para onde ir para as alimentar, saímos à rua e cada dia é diferente, tem de ser o tempo e o nosso instinto a dizer-nos para onde ir”.
Lá ao lado, o Tomás absorve cada palavra. Há momentos esteve sentado numa rocha, a sentir a brisa da tarde e com o olhar atento no seu rebanho que dormia à sombra de uma árvore. Mais tarde, viria a assistir à emocionante libertação de um milhafre preto, tratado pelo CERNAS (Centro de Recursos Naturais, Ambiente e Sociedade), iria continuar a íngreme subida até à aldeia do Sabugueiro, iria ver o seu rebanho dar duas voltas à capela local, para dar boa sorte à época de pastagem. E, com olhos de admiração, iria ver o pastor Pedro partir de cajado na mão e capa aos ombros para a sua morada estival. “Um dia vou ser eu”.
Texto e Fotos: Victor Melo