
Quase todas as tardes, quando saiam da escola, Carlos Miguel e os amigos iam brincar para a Praça de São João, no centro da Aldeia Histórica de Almeida. Havia lá uma casa que os fascinava. Era a maior casa da praça e também a que acumulava mais histórias.

Diziam que tinha um esconderijo secreto, que ninguém conseguia encontrar; ou que havia uma lareira tão grande que até deitava labaredas pelo chupão; ou que tinha uma sala, no primeiro andar, cujas pesadas portadas de madeira estavam quase sempre fechadas, ocultando um mistério que lá residia. Nas raras vezes que se abriam e o vento afastava as cortinas, viam-se pinturas de corpo inteiro nas paredes. No entanto, quem as observava jurava que essas pinturas estavam vivas, pareciam movimentar-se e aparecer em sítios e poses diferentes, de um dia para o outro.
Conversava-se sobre isso nas mesas dos cafés ou nos serões à lareira. Havia miúdos que passavam tardes inteiras com os olhos nessa janela, em busca de um vislumbre desse estranho fenómeno. Chamavam-lhe “A Sala dos Retratos”. Anos depois, quando Carlos Miguel comprou a casa, esse foi o primeiro compartimento que visitou.

O sol despertou cedo mas não afastou o frio invernal desta manhã em Almeida. Agasalhados dos pés à cabeça, atravessamos a praça da aldeia histórica e damos três ou quatro pancadas na porta vermelha de uma casa com quase 300 anos. Já se chamou Solar São João, mas agora é conhecida como Casa Memória. Por um lado, porque está cheia de histórias, tradição, património e, sobretudo, memórias de uma casa nobre que podem ser vivenciadas numa visita. Por outro, porque foi adquirida por nostalgia.
“Desde pequeno que sempre me senti atraído por ela. Evocava-me um sítio místico, como se fosse a casa de um rei. Tinha imensa curiosidade em saber como era por dentro ou quem tinha cá vivido. E constatar se as histórias que se contavam sobre ela tinham algum fundamento”, revela Carlos Miguel, com um sorriso.

Adquiriu-a em 2010, uma compra por impulso. “Quando soube que estava à venda, comprei-a de imediato, sem ter um propósito. Foi apenas por gostar da casa, de Almeida, das memórias de infância”. A casa estava degradada e foi num misto de entusiamo e assombro que Carlos a explorou. “Parecia um labirinto, era muito grande e tinha imensos compartimentos, todos muito escuros, com as janelas trancadas”.
Um ruído metálico acusa o destrancar da porta. Somos recebidos na Casa Memória por Augusto Moutinho Borges, historiador e autor que, juntamente com Carlos Miguel, embarcou no projeto empreendedor que transformou esta casa num espaço museológico que enaltece a história patrimonial e militar de Almeida e organiza diversas experiências turísticas.

O desígnio não surgiu de imediato. Carlos debateu inúmeras ideias sobre o que se poderia fazer aqui dentro. “Dava um hotel de charme fantástico”, ouviu, vezes sem conta. Mas essa e quase todas as outras sugestões exigiam destruir a parte interna da casa. “E isso estava fora de questão”. Por isso, esteve 10 anos sem saber o que lhe fazer, até que numa conversa casual com Augusto, fez-se luz: “O Carlos não tem de fazer nada à casa, se gosta tanto dela, mostre-a”.

A ideia, “tão simples e ao mesmo tempo tão pertinente”, agradou ao proprietário. Decidiram fazer um estudo para saber como é que era a casa originalmente, onde chegaram a contactar descendentes dos proprietários originais. Depois, iniciaram o restauro.
“Procurámos manter a traça mais original possível, desde os materiais escolhidos à conservação de todas as paredes da casa, de onde retirámos apenas o reboco mais recente”, afirma Carlos. Nesse processo, tiveram algumas surpresas. “Descobrimos várias portas e janelas que estavam tapadas. A reconstrução foi uma aventura”.

O próximo passo era mobilar a casa. Augusto tinha imensos móveis de época disponíveis. Os que não tinha, procurou em leilões de antiguidades. E sabia bem o que procurar. É autor de vários livros sobre História e Património. Durante a pesquisa para o livro “Palácios e Casas Nobres de Almeida e Castelo Rodrigo” (e também “Castelos e Fortalezas na Raia Luso-Espanhola“) entrou em quase todos os solares e palácios dos territórios envolventes das duas aldeias históricas.
“Adaptando o mobiliário ao espaço, criámos uma contextualização bastante fidedigna de como seria uma casa nobre dos séculos XVIII e XIX numa praça de guerra como Almeida”, afirma Augusto.

Foi ao remover um dos únicos móveis originais que restavam na casa, um pesado armário de madeira, que desvendaram o primeiro segredo do Solar São joão. O móvel ocultava uma passagem secreta que atravessava uma parede de pedra e levava a uma sala escura, que se dividia em dois compartimentos. Tinham acabado de descobrir o esconderijo.
“Nas alturas de invasões inimigas, era aqui que a família se refugiava”, conta Augusto, já em plena visita. “Um dos espaços funcionava como quarto e o outro para tudo o resto. É um sítio fresco, preparado para armazenar e conservar alimentos para três meses de cerco. A localização é estratégica, estamos debaixo da cozinha, por isso, os odores humanos são dissipados pelos odores gastronómicos. Para além disso, há um pequeno buraco no teto, escavado na rocha e oculto pelas cinzas do fogareiro da cozinha. De vez em quando, lá caía um chouriço ou uma fêvera cá para baixo. Ou faziam descer com uma corda um recipiente com água fresca. Era um espaço de proteção e solidão. As famílias ficavam lá até aos invasores se irem embora”.
A visita é recheada de detalhes e curiosidades, mas sobretudo de experimentação. Somos convidados a permanecer alguns instantes lá dentro e experienciar o isolamento, uns breves momentos desse exílio antigo, cuja duração era incerta.
Esta tendência manifestou-se logo no início da visita. Somos recebidos por uma aragem perfumada ao entrar na primeira sala da casa. Augusto explica que momentos antes de os convidados chegarem, era habitual alguém deixar borras de café, raspas de limão ou laranja, frutos aromáticos, paus de canela – tudo o que criasse aromas – numa taça de metal colocada numa mesa no centro da sala. “Imagine-se lá fora, em pleno século XVIII. 400 Cavalos, vacas, cães, gatos, dejetos. Entrar neste espaço, respirar fundo, sentir estes aromas, era uma sensação diferente”.

Posteriormente, passamos à sala diplomática, onde existe um trono rodeado por hábitos de ordens militares. “Nessas confraternizações, era aqui que se sentava a família da casa, com a mulher à direita e o filho à esquerda ou então, caso os convidados fossem dignidades civis ou religiosas, o trono era-lhes cedido”, explica Augusto.
No meio da sala, em cima de um tapete, uma braseira antiga denuncia o rigoroso clima da Beira Alta. “Isto são terras frias, no inverno ajudava a aquecer o ambiente. Já na primavera ou no verão, substituíam-se as brasas por ervas aromáticas, como o alecrim ou a alfazema”.

Nessa mesma sala, há um canto com retratos militares. Abundam as memórias das batalhas nesta vila raiana. “Almeida fazia parte da linha defensiva do reino, era uma praça de guerra, chegou a ter três mil soldados no século XVIII”, refere Augusto. “Havia aqui uma importante academia militar onde os nobres aprendiam a prática da guerra e eram deslocados, posteriormente, para o imenso espaço do império, como o Oriente, África e Brasil”.
Um dos muitos momentos históricos em que a guerra visitou Almeida ocorreu em 1810, no início da Terceira Invasão Napoleónica. Nesse inverno, 78 mil franceses entraram por estas terras no território nacional, 14 mil dos quais fizeram um cerco de 13 dias à vila fortificada, que aguentou de forma estoica os intensos bombardeamentos, até que uma granada de artilharia atingiu o rasto de pólvora de um barril que fez detonar a totalidade do arsenal que estava guardado no castelo.

Poucas casas resistiram à explosão que se fez sentir, que muitos almeidenses ainda apelidam de “o terramoto de 1810”. O Solar São João foi uma delas. Após a capitulação da vila, foi aqui que o líder do exército invasor, o marechal André Masséna, escolheu pernoitar. Ele está num dos retratos.
Numa das outras molduras encontra-se o seu grande rival, o Duque de Wellington, que também esteve em Almeida diversas vezes entre 1811 e 1813. Numa outra, o Conde de Lippe, que restruturou e reorganizou o exército português em 1762, no âmbito da Guerra Fantástica. Todos eles pernoitaram no Solar São João.

Com todo este legado histórico, não é de admirar que a casa esteja recheada de antiguidades bélicas, como pistolas de pederneira, mosquetes, espadas ou balas de canhão. Augusto convida-nos a pegar nas peças ou manusear as armas. Na Casa Memória incentiva-se à utilização, à interação, ao usufruto. “Não estamos num museu, estamos num espaço de memória, que evoca vivências”.

Simulamos um duelo com as armas seculares, cujo sonoro click do disparo induz que o mecanismo permanece em perfeitas condições. À medida que presencia, deliciado, o entusiamo desta experimentação, Augusto vai fornecendo informações.

“Estas armas representam os regimentos de Almeida: A ‘espada’ que tem na mão, por exemplo, era usada pela Cavalaria e, na realidade, chama-se um terçado. Falta-lhe um terço para ser uma espada ou um sabre. O que as pessoas costumam apelidar de ‘balas de canhão’, chamam-se, na realidade, pelouros”.

Incentiva-nos a agarrar nos diferentes tipos de pelouros. Alguns são feitos de pedra, outros de ferro. “Comparem”. A diferença de peso é enorme. “Conseguem imaginar a diferença dos ‘estragos’ causados por um e por outro? Quando não se tinha cão, caçava-se com gato”.

Há uma vitrina com imensos artefactos interessantes, desde caixas de farmácia antigas, usadas na guerra, inúmeros documentos associados ao período das invasões, pequenos porta-retratos que permitiam aos soldados (tentar) matar as saudades da família, ou cigarreiras de prata, que os oficiais usavam sempre no bolso esquerdo da camisa, “para proteger o coração das balas”.
Continuamos a explorar a casa e entramos na sala de lazer, com jogos, mesas para jogar às cartas e até uma velha grafonola, “que ainda funciona”. Esta sala esconde o segundo segredo da casa.

“Dizia-se que a casa tinha uma capela e, no entanto, quando as pessoas passavam cá nunca a encontravam”, revela Carlos Miguel. “Todos perguntavam: Mas então e a capela, onde está? Como se vai para lá?”
Podemos assegurar que a resposta a essa(s) pergunta(s) está algures nesta sala. Não a vamos descortinar, é para desvendar na visita.
De seguida, passamos a uma ampla sala de refeições, que era também um espaço de convívio nos tempos de paz. “O que se faz numa praça de guerra sem haver guerra? Tempo, lazer, tertúlias, conversa, tempo”. Augusto faz uma pausa e lança o desafio: “Imagine-a de noite, à luz das velas, a janela aberta, o tempo a passar”.
Quando acenamos em concordância e dizemos que conseguimos imaginar, Augusto assegura de imediato. “Não conseguem!”. Esse ambiente, sublinha, só se consegue imaginar e, sobretudo, vivenciar nas visitas noturnas à casa. “Todos os espaços da casa estão iluminados com pouca luz, de forma a recriar a iluminação da época. À noite, usa-se a luz de velas. E esse ambiente sente-se de forma muito autêntica nas visitas noturnas que organizamos”.

Essas visitas noturnas são uma das várias experiências turísticas complementares que a Casa Memória tem disponíveis para os seus visitantes, como visitas pedestres comentadas às Aldeias Históricas de Almeida, Castelo Mendo ou Castelo Rodrigo, provas de vinhos e outros produtos endógenos na antiga cavalariça da propriedade, organização de tertúlias e eventos culturais nos salões da casa, ou passeios num jipe descapotável de 1942 pelas ruas de Almeida.
No salão de refeições, Augusto mostra-nos vários artefactos curiosos. Um instrumento que mantinha a sala livre de insetos apenas com um pingo de mel; um espaço para lavagem das mãos, “um modelo muito presente nos palácios reais de Portugal e Espanha”; um método de refrigeração que arrefece as bebidas com água fria do poço; um peculiar instrumento que, com álcool, cera e calor, produz o efeito enrolado nos bigodes.
Ou uma antiga chocolateira, onde o anfitrião fazia o chocolate quente que, ele próprio, servia aos convidados. “É uma prática que o rei Dom João V instituiu na primeira metade do século XVIII. Ele adorava fazer o chocolate e servir à família. Habitualmente, esta era a única coisa que o senhor da casa fazia na sala de jantar, servir o chocolate aos amigos”.

Ao entrarmos na cozinha, Augusto alerta-nos para a “autenticidade encantadora” deste espaço rústico, sobretudo à luz de velas. Está abastecida com imensas peças do quotidiano antigo que, na altura, equivaliam ao recheio de uma cozinha contemporânea altamente equipada. Desde o moinho de café ao transfogueiro, “o micro-ondas do século 20”, aponta Augusto, sorridente. “O ferro é um excelente condutor de calor. Um pequeno tacho de sopa ali, junto ao fogo, em dois ou três minutos está quente”.

É aqui que encontramos a afamada “lareira gigante”, comentada ao longo das décadas pelas gentes de Almeida. Augusto mostra-nos o orifício oculto, por onde eram passados mantimentos para o esconderijo onde os proprietários se escondiam quando as muralhas de Almeida sucumbiam a um exército invasor.

Noutras circunstâncias, quando a ameaça se encontrava no exterior da povoação fortificada e a atacava à distância, com bombardeamentos contínuos, o esconderijo era outro. Junto à cavalariça, há um corredor escuro, com as paredes decoradas de lanças, alabardas e outros utensílios para “defesa da casa”. Numa das extremidades, há uma pequena entrada para uma espécie de gruta emparedada. “Era aqui que ficavam os galgos. Quando havia bombardeamentos, a família podia abrigar-se aqui. É um espaço robusto, todo em pedra, ficavam bem protegidos”.

Augusto convida-nos a entrar lá para dentro, sempre a sublinhar a natureza interativa e experimental da Casa Memória. “Aqui visita-se tudo, na íntegra”. O espólio é manuseável, todos os espaços são visitáveis e, sobretudo, vivenciáveis. “Até se podem sentar no trono da sala diplomática para tirar uma fotografia”, assegura o anfitrião.

À medida que exploramos as divisões e corredores, deparamos com todo o tipo de antiguidades interessantes. Desde caixas de música com discos de cartão a peças de porcelana da Dinastia Ming (1368-1644). Na Casa Memória não há vitrinas ou luzes diretas a apontar para esses objetos, que estão dispostos na casa de forma quotidiana, como estariam nos séculos XVIII ou XIX. “A luz sente-se no espaço, não nos objetos. É uma luz ténue, que cria um ambiente que nos leva a entrar, no tempo e no espaço, nessas épocas”.
Terminamos na famigerada sala dos retratos, que tanta curiosidade despertou a gerações inteiras de almeidenses. É lá que nos espera Carlos Miguel.

Sorri quando lhe perguntamos pelas famosas pinturas. Quando entrou nesta sala pela primeira vez, as paredes estavam seminuas, desprovidas de quadros, mas revestidas a papel de parede. Quando o arrancou, não encontrou nada. Até hoje, não sabe se as célebres imagens pertenciam a enormes quadros a óleo ou a murais. “Se eram quadros, talvez estejam escondidos no sótão”, alguém lhe disse. Explorou todos os seus recantos e não encontrou nada.
O mistério dos retratos vivos do antigo Solar São João permanece por desvendar.

Já a curiosidade dos almeidenses, continua insaciável. A Casa Memória recebe imensas visitas de turistas locais. Os mais velhos, por vezes partilham histórias sobre as suas relações ou perceções da casa. Os imponentes cavalos que viam entrar nos seus portões; o cheiro a doces que emanava para a praça, os quais a cozinheira, por vezes, partilhava com as crianças mais pobres; as memórias da dona Maria Cândida, que desde pequenina espreitava, de manhã e de tarde, pelas janelas do Solar São João para ver se as pinturas estavam no mesmo sítio.
Satisfeito com a sua aposta turística, o empreendedor ampliou-a. Converteu espaços da propriedade em quatro unidades de alojamento local. Adquiriu uma casa vizinha que renovou e adaptou num espaço para restauração que está, presentemente, disponível para ser explorado. E tem mais projetos de alojamento em vista (consultar: Risoturismo).
Confessa que a “procura nacional” nem sempre corresponde às expetativas, mas é compensada pelo interesse dos turistas estrangeiros. “Sobretudo os espanhóis, que adoram a nossa História e gastronomia”.
O futuro, vislumbra-o com optimismo. “Com a fortaleza de Almeida candidata a património mundial da UNESCO, espero que essa mais-valia tenha ainda mais impacto na rentabilização deste espaço tão especial”, afirma Carlos, sem conseguir disfarçar o orgulho que nutre pelo seu empreendimento. A Casa Memória, que permite aos visitantes viajar aos séculos XVIII e XIX. E a ele, à sua infância.