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O empreendedor quer, o colecionador sonha, o Museu Spectrum nasce

Museu Spectrum, Cantanhede

No verão do ano passado contámos a história de João Diogo Ramos, um engenheiro informático de Cantanhede que tem a maior coleção de computadores ZX Spectrum de Portugal. Na altura, escrevemos que essa coleção tinha uma misteriosa coincidência por trás e um desígnio ousado pela frente.

A misteriosa coincidência é para descobrir nessa reportagem: O regresso ao futuro do ZX Spectrum no Centro de Portugal.
O desígnio ousado era a criação de um museu dedicado ao Spectrum, um espaço que preservasse e estudasse esses equipamentos para memória futura e, simultaneamente, se tornasse numa atração turística internacional na região Centro de Portugal.

Esta última semana, esse desígnio ousado cumpriu-se. O primeiro museu Spectrum do mundo – LOAD ZX Spectrum – abriu as portas em Cantanhede.

Atravessamo-las na companhia do anfitrião, que partilhou connosco todas as novidades e todos os obstáculos ultrapassados desde a primeira exposição que esteve patente no Museu da Pedra de Cantanhede durante 16 meses e que intitulou load “”, o célebre código que tinha de ser inserido no computador para carregar um jogo. O carregamento levava tempo. João aproveitou-o bem.

Alargou o seu espólio, os modelos raros de computadores Spectrum já os tinha, mas criou todo um ecossistema dedicado a tudo o que os rodeava, a Sinclair e a Timex. “Importa-me a história, a homenagem, mais do que mostrar uma coleção pessoal”. Adquiriu impressoras Sinclair e aparelhagens “ainda a funcionar”, protótipos nunca vistos da Timex e até outros computadores, como o Ener 1000 – o primeiro computador português, criado na Universidade de Coimbra – ou o (na altura tão caro quanto cobiçado) Commodore 64, com os quais criou uma secção específica, “só para contextualizar outras alternativas que existiam na época”.

O seu projeto foi finalista do Prémio José Manuel Alves, concurso de empreendedorismo turístico do Turismo Centro de Portugal, onde obteve o segundo lugar. A sua face competitiva exigia mais. “Os prémios são feitos para se ganhar”. A sua face racional tranquilizou-o. “A distinção deu credibilidade e visibilidade. E num universo de mais de meia centenas de candidaturas, ser finalista, estar taco a taco até ao fim e depois ter a satisfação de perder para um grande amigo, o Rui Nuno Castro (projeto Smart City Concierge), tornou o desfecho um mal menor”.

O dilema do espaço físico também se resolveu com naturalidade. Em colaboração com o Município de Cantanhede ficou decidido que seria aproveitada uma antiga escola primária no centro da cidade para albergar o museu. “Ter este espaço deu-nos autonomia e liberdade para implementar uma narrativa e uma linguagem muito própria, muito peculiar como o nosso projeto”.

Acompanhado por uma equipa de voluntários entusiastas do projeto e por colaboradores da Câmara, seguiram-se meses de “trabalho duro” de conversão do espaço. O design, os expositores, a estrutura das secções, a iluminação, tudo foi meticulosamente elaborado para tornar o espaço apelativo. E o apelo fez-se sentir. Os órgãos de comunicação social interessaram-se de forma voraz pelo projeto. Jornais, televisões, rádios, revistas e websites, espalhou-se um pouco por todo o lado a notícia que o primeiro museu do mundo dedicado ao Spectrum ia surgir em Cantanhede.

João foi apanhado de surpresa. “Não enviei um único press release”. Mas não ficou surpreendido. Está bem familiarizado com o peso nostálgico e a significância histórica desta caixa que apelida de mágica. “Se há uma necessidade generalizada e tu tens um produto que corresponde a essa necessidade, ele vende-se a si próprio”. E são vendas que importam visitantes. Inglaterra, Escócia, Espanha, Irlanda, Brasil. Todos os dias, João acumula e-mails de interessados além-fronteiras que planeiam vir a Cantanhede. “É a minha contribuição para a cidade”, afirma, sorridente.

E a cidade reconheceu-a. “O interesse que o projeto suscitou a nível nacional e internacional superou as nossas melhores expetativas, tem havido um grande interesse por parte da grande comunidade de autêntico culto pelo ZX Spectrum, uma comunidade que, como temos visto, agora, tem grande expressão em todo o mundo. Isso faz-nos pensar que foi acertada a decisão que tomámos em criar o museu a partir do espólio construído ao longo de vários anos por João Diogo Ramos”. As palavras são de Helena Teodósio, presidente da Câmara de Cantanhede.

João Diogo Ramos e Helena Teodósio, presidente da Câmara de Cantanhede

Revela-se satisfeita por se ter deixado “entusiasmar” com a iniciativa: “Este é mais um importante polo de atratividade turística que irá motivar a afluência de visitantes à cidade e ao concelho, com todos os benefícios daí decorrentes para a dinamização de outros equipamentos culturais e da economia local, sobretudo ao nível da restauração e da hotelaria”.

Entretanto, o som estridente cessou no gravador e as linhas horizontais deixaram de escorrer no ecrã. O jogo entrou e nós também. Encontramos um espaço onde a criatividade acompanha a curiosidade. Para além do profundo cuidado estético e da extrema organização, as secções estão cheias de surpresas para descobrir.

Há portas que parecem passagens secretas e afinal são portais que nos levam a uma sala dos anos 80. Há salas de aula em cujas secretárias se pode jogar e em cujos quadros se aprendem lições de História do Spectrum. Há paredes recheadas de caixas de jogos onde se podem tirar selfies. Há um móvel antigo – completamente restaurado após ter sido encontrado em estado terminal num armazém municipal – cheio de livros sobre o tema que podem ser consultados no espaço.

E há estantes e mais estantes, com imensas preciosidades e excentricidades, desde o novo ZX Spectrum Next a relógios Sinclair de 1975 que parecem saídos de um episódio de Star Trek. “O Black Watch é icónico, até tinha um visor a leds, mas foi um grande fiasco, tinha limitações de bateria”.

Houve vários fiascos na empresa britânica e João tem-nos quase todos em exibição. “A Sinclair fez muita coisa que não foi bem feita, mas arriscou, fez!”. E todos esses feitos, explica, estão por trás do famoso 48k que a História viria a imortalizar. “Isso é muito o nosso museu, está feito mas não vai ficar por aqui. Irei continuar a aprender pelo caminho, a cometer erros, a ser criticado, mas ninguém me pode acusar de não fazer. Este museu é, por isso, também uma homenagem aos empreendedores”.

E – garante-nos à saída – nem o seu espírito empreendedor nem o seu empreendimento se acomodarão com o sucesso que está a ser alcançado. “Existe uma sensação de dever cumprido mas também de começo, de um começo imparável. Não sei onde isto vai parar, mas tenho muita curiosidade em descobrir”.