Era Inverno e a cidade parecia gelada do outro lado da janela. Patrícia Esteves contemplou-a durante alguns instantes, com as mãos envoltas numa chávena a fumegar. Pousou o chá de erva doce na secretária, espreitou o ecrã, levou o dedo ao botão esquerdo do rato e clicou “publicar”. Sorriu quando viu a notificação vermelha a assinalar uma partilha. Logo surgiu mais uma. Depois outra. E outra. Em poucos segundos, eram dezenas. Quando acabou de beber o chá, eram milhares. O seu artigo sobre trabalho infantil na produção do chocolate em África tinha acabado de se tornar viral no seu blog “O Único Planeta que Temos”. Na manhã seguinte, quando ligou o computador, nem queria acreditar nos seus olhos. O artigo tinha 600 mil partilhas. E passava um milhão de visualizações.
Foi aí que Patrícia sentiu que devia transformar o seu blog num projeto mais específico, um website dedicado à sustentabilidade, aos direitos humanos e dos animais, à alimentação saudável, à agricultura biológica e à mobilidade urbana. Chamou-lhe UniPlanet. Hoje, reúne cerca de milhão e meio de visualizações por ano, tem 59 mil seguidores no Facebook e quase três mil no Instagram. E acaba de lançar uma iniciativa ligada ao turismo sustentável em Portugal.
A preocupação ecológica surgiu cedo. E naturalmente. Por mais que se esforce, Patrícia não consegue encontrar uma origem ou sequer um motivo. “Aconteceu de forma natural, quase inata”. Na altura da secundária, se fosse preciso, andava um ou dois quilómetros com um pacote de sumo vazio na mochila até encontrar um ecoponto. Tornou-se vegetariana em 2002, com 17 anos. “Para além de descobrir que era intolerante à lactose, ganhei aversão à carne, sentia que conseguia perfeitamente viver sem comer animais”.
Nas férias com familiares, separava o lixo religiosamente. “Inicialmente eles não separavam, mas viram-me a fazer, dia após dia, e começaram a separar também”. Alguns, inclusivamente, levaram essa tendência para as suas casas. “Aconteceu sem qualquer tipo de insistência ou imposição. Na comunidade vegan há pessoas muito persistentes, que apontam o dedo e impõem comportamentos. Eu prefiro seguir pelo exemplo. Nós damos o exemplo e depois as pessoas escolhem entre adotá-lo ou não”.
Foi essa a mentalidade que incutiu no seu blog, lançado em 2009. Também aconteceu de forma natural. “Acho que nunca tinha lido um blog na vida”, refere, sorridente. “Simplesmente cheguei a casa e decidi criar um. Sou muito espontânea, as ideias surgem-me e concretizo-as. É como se fosse uma experiência, quero ver o que acontece”. Batizou-o “O Único Planeta Que Temos”. Foi ganhando popularidade, venceu prémios, multiplicou visualizações.
Escrevia artigos sobre temas que considerava pertinentes ou partilhava conteúdos inspiradores. “Mostrava exemplos de projetos e boas práticas, tanto cá como no estrangeiro. E ficava ao critério das pessoas ou das empresas adotar ou não esses procedimentos”. Patrícia também gosta de desmistificar temas ligados à ecologia ou ao vegetarianismo. Um dos primeiros artigos do blog foi sobre o documentário “Soja em Nome do Progresso”, onde é revelado que “a destruição da floresta amazónica para plantar soja não se deve ao consumo vegetariano, mas à alimentação da indústria do gado”.
Em 2011 cria a página do Facebook, que vem ampliar a divulgação. “As partilhas passaram a ser às centenas de cada vez”. Os anos foram passando e adesão ao blog aumentando. Após o referido artigo viral, Patrícia decidiu evoluir o projeto. Começou por alterar o nome. “Queria algo mais objetivo e sintético”. Escolheu UniPlanet. Alterou também o formato. “Mais website de notícias, menos blog”. A mudança fez-se sentir de imediato. “Os nossos artigos começaram a ser partilhados por associações e por instituições, até governamentais. Os conteúdos eram os mesmos, mas pronto”, afirma, com um sorriso irónico.
O acréscimo de credibilidade da restruturação levou até os artigos da UniPlanet às salas de aula. “O meu irmão (14 anos) ligou-me uma vez a contar que estava na aula de Geografia e a professora tinha acabado de dizer que existia uma página chamada UniPlanet que eles deviam seguir”, relembra Patrícia. “Ela frisou o facto de estarmos a criar hortas comunitárias”.
A inspiração veio de Londres. Durante uma viagem à capital do Reino Unido, Patrícia descobriu o conceito das hortas comunitárias, onde residentes urbanos se organizam para gerir um terreno e cultivar alimentos. Quando regressou, trouxe a ideia com ela e estava decidida a semeá-la algures. Começou a averiguar terrenos e descobriu um a poucos quilómetros de Coimbra, num vale escondido onde as águas do Mondego escorrem tranquilamente perante montanhas imponentes e margens selvagens. “Pertencia a um senhor que não estava a dar uso ao espaço, o qual nos cedeu com uma única condição: não usar pesticidas. Foi uma coincidência engraçada, pois ia ao encontro do que eu defendia”.
Patrícia abriu inscrições para eventuais interessados na comunidade do UniPlanet e a adesão foi em massa. “Quando dei por ela tinha uma lista de espera de 70 pessoas de todo o país”. Criou um grupo no Facebook dedicado à horta comunitária, onde os candidatos a agricultores começaram a debater ideias, desde a preparação caseira de fertilizantes ecológicos a truques para afugentar javalis. Na maioria eram iniciantes, por isso Patrícia obteve uma formação na Turisforma de agricultura biológica para o grupo, composto por 15 pessoas.
Os sábados do Outono de 2018 começaram a ser preenchidos na horta, a limpar o terreno e a arrancar ervas daninhas, a aprender técnicas e a saber que alimentos plantar, de acordo com as estações. Dividiram o terreno em 12 talhões, um para cada pessoa/família e sortearam-nos. Compraram enxadas, sachos, ancinhos, regadores, baldes e cordel de sisal para delimitar os espaços. E começaram a semear. Diversos tipos de couve, brócolos, ervilhas, alhos, nabiças, alfaces, salsa, cebola, tomates, batatas. Para espanto geral, Patrícia plantou até amores-perfeitos. “São comestíveis, podem ser usadas em saladas e como decoração comestível em pratos ou sobremesas”.
O grupo tornou-se próximo. Faziam piqueniques, iam apanhar cogumelos, organizavam limpezas de praias e até combinaram ir ver eclipses lunares às quatro da manhã. Fizeram escadas para aceder ao rio e até se falou na possibilidade de construírem uma nora para tirar água do rio como antigamente. De tempo a tempo, entusiasmados e orgulhosos, partilhavam fotografias do progresso das suas hortas e das colheitas. Os desafios que encontravam eram sempre superados com a ajuda do dono do terreno, Agostinho Cortez. “Foi, sem dúvida, uma figura-chave no projeto”, diz Patrícia.
Tudo corria de feição, mas 2019 não se revelaria um ano fácil. Na Primavera, roubaram-lhes todas as ferramentas e os sacos de adubo. No Inverno, as cheias do Mondego inundaram a horta. Em 2020, a presente pandemia atrasou os trabalhos de recuperação. Mas Patrícia está determinada em arregaçar as mangas e reerguer o projeto. “À partida no início do Outono vamos voltar”.
Durante este período, Patrícia criou mais duas hortas comunitárias, também em Coimbra (Bencanta). Conheceu a ORYZA Guest House & Suites e reparou num terreno que não estava a ser utilizado. Visitou o espaço, conheceu os proprietários – o casal Sérgio Santos e Lídia Gonçalves – e, sem rodeios, propôs a criação de uma horta comunitária. “Gostaram da ideia. A Lídia até já conhecia o UniPlanet e tudo”. Patrícia meteu mãos à obra, divulgou o novo projeto conjuntamente com o Oryza, ela no seu website, eles nas suas redes sociais. Pouco tempo depois, já estava tudo organizado e dividido em talhões e com cerca de 20 agricultores a introduzir esta nova rotina nos seus quotidianos.
“É um projeto completamente dentro do conceito city&nature que é exatamente a filosofia da nossa Guest House”, afirma Lídia. A proprietária revela sentir “um gosto enorme” em receber todas as pessoas que vão cultivar no seu terreno. “Trazem a sua família por vezes, partilham ideias, sementes, etc. É extraordinário ver o poder de um grupo com os mesmos objetivos: produzir os seus legumes e frutas 100% biológicos. A experiência está a ser maravilhosa, que venham muito mais anos de partilha e muitas culturas saudáveis”, afirma.
E mais culturas viriam. Ao lado desta horta estão os terrenos da Casa do Juiz, uma associação de solidariedade social e centro geriátrico, onde existe um enorme bambuzal. Um dia, Patrícia viu um dos responsáveis no terreno. Abordou-o para ver se conseguia obter algumas canas. “Dão muito jeito para fazer estrutura de tomateiros”. No entanto, havia um duplo propósito na abordagem. “Vi-o a usar glifosato, um herbicida e disse-lhe: sabe, se tivesse um terreno cultivado, com hortas, não precisava de meter isso nas ervas. Se tivesse aqui as pessoas a trabalhar na terra não precisava de fazer isso”. Patrícia terá percecionado recetividade na sua expressão e avançou de imediato com uma ideia: “Porque não criar aqui uma horta escolar? Um projeto intergeracional, que junte as crianças com os idosos? Seria muito giro”. Pouco tempo depois, a associação deu-lhe luz verde.
Patrícia começou a abordar escolas e conseguiu duas. A Escola Básica de Fala (terceiro e quarto ano) e o Jardim-de-infância de São Bento. Conseguiu, inclusivamente, apoio da Junta de Freguesia de São Martinho para transportar as crianças num autocarro. “Eu tenho muita lata”, afirma, sorridente.
Futuramente, vão criar estruturas de “hortas levantadas”, para facilitar a participação dos idosos e possibilitar a participação de pessoas com mobilidade reduzida. “Já temos os esquemas feitos, só falta materializar”.
Mas há mais hortas comunitárias, no presente e no futuro de Patrícia. Tem um projeto pronto a implementar na Nazaré, “numa quinta dentro da vila que fica a 10 minutos da praia a pé”, que só ainda não arrancou devido à pandemia. E já tem um novo em mente para o futuro: Uma horta terapêutica, direcionada a pessoas com problemas mentais (ansiedade, depressão, bipolaridade, etc.) e ex-toxicodependentes. “Será, principalmente, uma horta onde vão ser plantadas ervas aromáticas e chás (infusões). O contacto com a natureza, com a terra e neste caso com as ervas aromáticas tem um efeito terapêutico”, afirma Patrícia, que está a averiguar potenciais espaços para albergar este novo projeto.
Paralelamente a esta viagem pela blogosfera e pelas hortas comunitárias, Patrícia licenciou-se em Turismo, Lazer e Património, com um posterior mestrado em Gestão. Presentemente, quer investir conhecimento no Centro. Está a tirar um doutoramento – “O destino turístico Coimbra: Governança, oferta turística e comunidade local” – através do qual está a estudar a relação de Coimbra com o turismo e a investigar estratégias para o tornar mais sustentável na cidade.
Sustentabilidade é uma palavra que a apaixona e a move. “Ela torna as coisas mais funcionais, mais em harmonia com os recursos que a Terra nos dá, ao mesmo que criamos uma sociedade mais equilibrada, ou seja, sustentabilidade social”.
Motivada e inspirada por isso, criou uma iniciativa no seu UniPlanet que envolve um ciclo de artigos dedicado a projetos turísticos a nível nacional que se destacam pelo seu compromisso com a sustentabilidade. “A minha ideia é apoiar o turismo nacional e sustentável através destas entrevistas, dando a conhecer estes projetos à minha comunidade de leitores”.
Patrícia tem testemunhado imensos exemplos de boas práticas prol da sustentabilidade. “O reaproveitamento de materiais, a criação de hotéis para abelhas, a implementação de piscinas biológicas e hortas biológicas, a disponibilização de bicicletas, entre muitos outros exemplos que podem conhecer nos artigos já publicados ou a publicar em breve”.
Neste âmbito, já deu a conhecer inúmeros empreendimentos a nível nacional. Na Região Centro, obteve a colaboração da Luz Houses (Fátima), Areias do Seixo (Torres Vedras), Casa das Palmeiras (Mangualde), Oryza (Coimbra) e do Chão do Rio (Seia).
“Parece-nos essencial aprender e partilhar aprendizagens sobre como, em conjunto, a humanidade pode fazer a transição para um modo de vida em sintonia com o sistema natural”, afirma Catarina Vieira, gerente deste último empreendimento.
Explica que conheceu a UniPlanet através da Raízes Mag, revista (cofundada por Patrícia) que assina e que partilha com os seus hóspedes no Chão do Rio. A natureza, para Catarina, é algo incrível. “Transcende-nos a sua capacidade de se autorregular, cuidar do todo, eliminar ameaças e recomeçar. E, neste momento, nós a espécie humana somos a ameaça”, garante. “É por isso que projetos como a UniPlanet, que se preocupam, que partilham boas práticas, que agem e inspiram à ação são essenciais neste processo de transição. A tomada de consciência é essencial para a mudança, mas não chega a tomada de consciência. É preciso acreditar que a mudança é possível, é preciso ter esperança. Só tendo esperança somos motivados ao passo seguinte essencial para a transição: a ação”.
E esperança não é uma palavra estranha para Patrícia e o seu UniPlanet. Quando lê as muitas mensagens que recebe dos seus leitores, é comum encontrá-la lá. “Eles dizem que lhes damos esperança num mundo melhor”.
E encontra também a palavra “inspiração”. Pessoas que afirmam ter ampliado a sua consciência ecológica ao visitar o website, outras que agradecem o empurrão motivacional para melhorar a alimentação e, consequentemente, a saúde. Lojas vegan, ecológicas ou até fabricantes de embalagens de take away que começaram a comercializar pratos comestíveis feitos de farelo de trigo em Portugal, após lerem o artigo sobre a empresa polaca que os produz. Ou até a história de um senhor brasileiro que há anos tentava – sempre sem sucesso – erradicar os refrigerantes da sua dieta, e que, finalmente, conseguiu encontrar a determinação para o fazer após ler um artigo sobre o tema no UniPlanet.
As mensagens na caixa de correio são diversas, mas a reação de Patrícia quando as lê é sempre a mesma. Um olhar emocionado e um sorriso de orelha a orelha. “Nunca sabemos quem estamos a inspirar do outro lado do ecrã”.